Ninhá!
Eu não era mais uma criança. Aliás, eu não sou mais uma criança. Mas acho que ele não entendeu ainda. E, após me abraçar por uns 5 minutos, ficou me olhando bem fundo nos olhos, daquela forma que apenas pais (ou aqueles dotados de paternidade) conseguem olhar. Então ele disse:
- Cookie - quando eu era mais nova eu odiava esse apelido comum no país dele. Depois passei a gostar. E depois a sentir vergonha. E agora, soa como música aos meus ouvidos, pelo som da voz dele. - Você está diferente.
- Eu cresci, ué. - Respondi, tentando esconder o que estava na cara.
- Também. Agora você mora com seu pai de verdade, né. - Ele disse, com uma expressão dividida entre o tentar parecer feliz e o realmente triste.
- Pai é aquele que cria, certo?
- Sim, mas ele sequer teve a chance, não é mesmo?
- Sim, mas você teve e é o melhor do mundo. - repliquei.
- O melhor do mundo? - ele sorriu.
- Sim! O melhor do mundo! Senti sua falta! - e tornei a abraçá-lo.

E, após uns minutos no abraço dele, senti que seus olhos grandes e verdes me olhavam.
- Você mudou de assunto, Cookie.
- Que assunto?
- Que você está diferente.
- Impressão sua.
- Pais nunca tem impressão errada.
- Nem mães - disse, por mais que aquilo me doesse. Lembrar dela ainda doía.
- Certamente não - ele concordou.
- Sinto falta dela. - admiti.
- Eu sei.
- Quando... Bem, quando vocês se separaram, doeu tanto assim? - perguntei, correndo o risco de parecer idiota.
Ele pensou por um instante. E por todo esse instante eu me dei conta que eram coisas completamente diferentes. Então ele respondeu:
- Doeu. Mas são dores diferentes. Eu sequer consigo imaginar a dor que você sente. Nem eu e nem seu pai biológico. Mas acredito que não te conhecer até seus 20 anos doeu muito mais a ele.
- Será? - duvidei.
- Com certeza. Não duvide disso. Me separar dela doeu. Mas doeu mais ainda ser obrigado a me separar de você. Porque são sentimentos diferentes.
- É, eu sei... - tive que concordar.
- Mas me diga. - ele insistiu - O que aconteceu?
- Tudo. Tudo aconteceu.
- Não estou falando do que aconteceu com a tua mãe. Estou falando desse brilho no olhar. Desse sorriso. Dessa forma de caminhar - dizia ele com todo o sotaque dele, às vezes trocando palavras do português para o inglês.
- Não entendo. - tentei esconder. Mas eu sabia que, sendo chefe de alguma coisa de algum setor da polícia da cidade onde ele estava trabalhando agora, ele não ia deixar escapar uma mentira bem debaixo do nariz dele.

Ele me olhou profundamente de novo. Então eu fiz o maior esforço que pude para evitar que ele lesse meus pensamentos. Acho que fiz tanto esforço que franzi a testa.
- Se esforçando para o quê? Pensar no que vai me dizer para esconder o que tá acontecendo aí dentro? - e apontou para o meu peito.
Depois dessa eu apenas ri. Será que não se pode mais guardar segredos?
- Você pode me contar se quiser - ele continuou - Eu adoraria saber dos seus sentimentos e conversar sobre eles.
- Não é tão simples assim. - respondi, tentando responder o mínimo possível porque... Bem, vocês mulheres  sabem: quanto mais a gente fala, mais o choro sai.
- Não é tão simples assim because... - e deu ênfase não só com a voz, mas também com um aceno de cabeça.
Foi então que eu decidi que as minhas mãos eram a mais bela coisa a se olhar naquele momento. Sim, porque olhar o horizonte é dramático demais. Olhar uma das árvores ou flor daquele parque é romântico demais e me denunciaria. Olhar para o chão é culpado demais. E fingir que olhava o esmalte me pareceu a melhor das ideias. Então me dei conta que não havia esmalte para olhar.
- Quem é? - ele perguntou.
- Ah, você não conhece. - e acrescentei: - E, pelo visto, nem vai conhecer.
- Morreu?
- Ah não não. Mas deve morrer para mim. - falei, tristemente, tentando não ser dramática demais.
- Because...?
- Because nada. Simplesmente porque as coisas devem ser assim - eu disse - O platônico, o sublime, o puro é lindo. Mas na verdade só um dos dois sofre. Não se tem ninguém para dividir esse sentimento.
- Divida-o comigo.
- Não posso. Não consigo. Eu não consigo evitar. Eu gosto dele, eu amo ele. Depois de quase um ano nada mudou.
- Nada?
- Nada. Bom, talvez algo. - pensei bem.
- O quê?
- A realidade. - pensei, deixando que uma lágrima caísse. - Entender o que é nunca. Talvez isso tenha mudado.
- Nunca é algo que nunca vai acontecer. Você tem apenas 20 anos. Acho que nunca não deveria existir no seu vocabulário. Você não conheceu seu pai biológico 20 anos depois de nascer? - ele argumentou.
- ELE quis me encontrar também. Foi recíproco. Não foi platônico. - respondi.
- E o que faz desse rapaz tão especial?
Pensei por um tempo. Mas já que já havia feito minha confissão, resolvi continuar:
- Primeiro foi os olhos. Depois, o sorriso. Aí quando eles se juntaram... Bom, eu já estava dentro dos olhos dele. Do olhar dele. E eu vi ele hoje.
- Acho que ele ficaria honrado em saber que é amado de uma forma tão pura.
- Não sei por quê, mas senti um tom de brincadeira na sua voz. - desconfiei.
- Deve ser o sotaque, então. Eu juro que achei bonito o que você disse.
- Não é bonito, é triste.

Ele então pegou o crucifixo que usava ao pescoço (é um tique que ele tem, quando pensa no que vai falar), correu ele pela correntinha e voltou a guardar dentro da camisa. Estava pronto para dizer algo.
- Não é triste. É belo. Não se acha mais amor desse jeito. Nessa forma. É raro.
- Bom pra quem não sente, né.
- Jamais. Cookie, pode me chamar de velho, obsoleto e enferrujado. Mas sentir que se ama alguém é algo perto do sublime. Quando se ama de coração puro, sem condições, sem amarras e sem a intenção de receber algo em troca... É puro, é sublime. É lindo.
- Eu queria que ele me amasse também - e assim assinei embaixo a minha confissão.
- Mas você já ama ele há um ano. Quase um ano amando e sem ter a certeza se é recíproco ou não o sentimento. Você não espera nada em troca.
- Ótimo, sou uma masoquista agora.
- Perto. Mas você está se esquecendo de que ele pode ter sentido o mesmo com o teu olhar, o teu sorriso, a tua voz e a tua risada. E simplesmente não aconteceu nada. Porque não era o momento. E nem o lugar. E talvez ele tenha se assustado. E vocês se separaram em instantes.
- Então, triste isso.
- Para os dois lados. Logo, você tem com quem dividir. Em pensamento.
- Não me conforta isso - admiti.
- Sabe, Cookie, nem todo mundo que a gente conhece é para permanecer em nossas vidas. Mas o momento em que a conhecemos, e principalmente quando conhecemos as especiais, esse é único. É eterno. E é daí que a gente percebe que se encontrou não só com aquele ser humano, em carne e osso. Digamos que seja mais para um re-encontro.
- Você anda muito filosófico ultimamente.
- "Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia." - recitou ele sua peça de teatro favorita.
- E há mais coisas entre o cérebro e o coração do que eu queria que houvesse - parodiei.
- O quê, por exemplo?

Pensei. Pensei de novo. E então respondi:
- Uma cabeça e um pescoço, oras!

Ele deu aquela risada que dificilmente ele deixava escapar. Aquela risada que me lembrava que ele não era tão sério assim. Ele estava apenas "endurecido" por tanta realidade e tão pouco sonho que via no dia-a-dia. E aproveitei o momento de descuido dele para guardar no bolso o papelzinho que continha as letras e a assinatura da razão daquela conversa.

Do livro: Joguem no Google e Descubram. Se é que ele existe.

"A vida é breve, a alma é vasta" 
Fernando Pessoa

PS: Dedicado a você, Gêmea, pela força e por me cobrar textos novos.